This interview between Joice Ferreira and incoming Executive Editor, Jos Barlow, is also available in English here.
Como você se interessou pela ecologia?
JF: Eu diria que a Ecologia sempre esteve latente em mim desde muito pequena quando me lembro do meu fascínio e curiosidade pela natureza. Nasci na zona rural do Brasil, na região das savanas e minhas primeiras lembranças foram sempre relacionadas àquela natureza rústica e todos os seus ciclos. Eu era uma criança muito atenta ao contraste marcante entre as estações de seca e chuva, me sentia muito fascinada pelos pássaros, como o canto da [rolinha] “fogo apagou” típica da minha região, a floração roxa das sucupiras e o amarelo dos ipês, tudo era uma explosão de cores no meio da seca do cerrado e chamava minha atenção de criança. Mais tarde, já na escola e morando na zona urbana, descobri que gostava muito das aulas de ciências, o que me levou ao curso de Biologia. Finalmente, vieram as grandes discussões ambientais que ocorreram no Brasil, na época da Rio 92, que coincidia com o início da minha graduação, penso que tudo se aglutinou e consolidou o meu interesse pela Ecologia das savanas e depois das florestas amazônicas que, não tenho dúvida, se iniciou lá nas minhas raízes da infância.
Quais desafios você enfrentou ao estabelecer sua carreira?
JF: A história da minha família sempre foi marcada por dificuldades, mas também por muita resistência. Venho de uma família de camponeses que sobreviviam da agricultura tradicional, meus avôs e avós não tiveram qualquer educação formal. Incentivada pela força da minha mãe que era uma professora e liderança rural, eu sempre recebi incentivo para estudar e tinha o impulso para ultrapassar essas barreiras, aliás nasci e cresci dentro de uma escola. Estudei em escola pública, o que no Brasil significava de certa forma ser condenado a uma educação mais precária. Certo dia, porém, passei num concurso escolar de redação e acabei ganhando uma bolsa de estudos para a escola particular. Naquele período, não existia universidade na minha região e apenas os filhos de famílias abastadas tinham acesso às universidades que estavam na capital bem longe (há cerca de 800 Km da minha região). Acontece que no início dos anos 90, houve uma virada com a criação de um novo estado e consequentemente de uma universidade estadual. Então, finalmente passaram a existir um pouco mais de oportunidades, embora na época ainda não existiam no Brasil programas governamentais para acesso de minorias às universidades e assim tudo dependia mais dos esforços individuais. Eu sempre trabalhei desde muito nova, como assistente de professora, e continuei até o período da graduação. Enfim, tudo foi na base de muita luta e resistência de forma que ser a primeira pessoa da minha família a quebrar essas barreiras e conseguir chegar à universidade foi uma conquista fenomenal.
O que levou você a seguir um caminho diferente de muitos pesquisadores, e se comprometer a gastar tempo se comunicando e discutindo seu trabalho com outras pessoas?
JF: Durante o meu doutorado em Ecologia, minhas pesquisas foram mais focadas em reservas ambientais públicas e eu não considerava questões políticas ligadas aos impactos das mudanças de uso da terra. Imediatamente após concluir o doutorado, assumi a posição de pesquisadora na instituição que trabalho atualmente e percebi que não poderia mais ficar restrita às reservas públicas e às áreas mais prístinas, uma vez que no Brasil há muita área natural sob o domínio privado e também muito problema de degradação ambiental. Começar a trabalhar nessas áreas me levou à necessidade de dialogar com esses atores sociais, sem o qual seria impossível realizar qualquer pesquisa. Esse diálogo nem sempre foi fácil, em especial em algumas regiões, como o caso de Santarém, na Amazônia Central, onde a substituição das densas florestas por soja foi marcada por intensos conflitos entre ambientalistas e sojicultores. Naquele período, por volta de 2010, co-fundei com um grupo de colegas britânicos, a rede de pesquisa RAS e tínhamos como princípio o diálogo com os atores locais e regionais para entender suas visões de mundo, assim como o esforço para que os resultados das pesquisas fossem aplicados em transformações na sociedade.
Qual foi sua experiência mais gratificante em envolver os tomadores de decisão em torno de sua pesquisa?
JF: Tenho várias experiências que considero positivas, mas talvez uma das principais tenha sido aquela em que nosso grupo de pesquisa orientou um conjunto de legislações estaduais para proteção das florestas secundárias em regeneração no Pará. Foi um processo que demorou mais de um ano, a partir da formação de um grupo de trabalho, o qual teve muitas interações, fizemos análises específicas usando nosso conjunto de dados da pesquisa buscando encontrar uma solução que fosse simples e robusta para permitir a ampla aplicação no campo. Além disso, também considero muito compensador quando publicamos um Policy Perspective, na Science sobre o risco da sobreposição de pedidos de mineração em unidades de conservação no Brasil, especialmente na Amazônia, e fomos convidados para um debate no senado federal brasileiro e ainda para um debate na Associação Brasileira de Mineração. Foi muito desafiador, claro, mas também, muito compensador por outro lado.
Quais foram os momentos mais frustrantes e desafiadores?
JF: Eu diria que talvez de um ano pra cá tenho vivido momentos frustrantes quando percebo que no Brasil tem havido retrocessos no diálogo entre ambientalistas e os atores rurais. Há 10 anos atrás, eu percebia que os atores do meio rural viam mais benefícios no engajamento para solução dos problemas ambientais e hoje sinto que parte dessa construção está se perdendo.
Muitas pessoas vêem a preocupação ambiental como uma agenda política. Ao trabalhar nessas questões, às vezes você é chamada de ativista e não de pesquisador? Como você navega essas perguntas?
JF: Sem dúvida, recebo o rótulo de ativista muitas vezes e acredito que não seja algo tão incoerente. Obviamente prezo pelo rigor científico e os princípios que envolvem a Ciência. Mas, ao trabalhar com questões ambientais na Amazônia que é uma região tão repleta de conflitos, um pesquisador não deixa de enfrentar questões de injustiça ambiental e ameaça aos direitos humanos. Então, sinto satisfação em ver que minhas pesquisas podem contribuir para a defesa do meio ambiente e, indo além, potencialmente podem contribuir para o empoderamento e proteção de grupos mais vulneráveis. Em meus trabalhos, me relaciono com diversos grupos sociais, incluindo comunidades tradicionais, indígenas, assentados da reforma agrária, etc. Então, não posso simplesmente estudar os ecossistemas, ignorando as pessoas que fazem parte deles e que muitas vezes esperam ter alguma voz a partir dos resultados das pesquisas. Portanto, não tem como não abraçar a Ecologia Política e não trabalhar pelas causas ambientais, mas sempre embasado nos princípios científicos, claro.
Que conselho você daria para jovens pesquisadores que estão iniciando suas carreiras agora, e querem fazer mais do que apenas ‘pesquisar’?
JF: Eu sugeriria a todo pesquisador em início de carreira que busque contextualizar suas pesquisas em um escopo maior, sempre se perguntando como suas pesquisas podem contribuir para o bem da humanidade, independentemente da sua escala de observação. É sempre bom identificar em que contexto o seu tema de estudo está inserido. Muitas vezes pesquisadores tem dificuldade em olhar à distância e enxergar esse contexto. Porém, se começar a buscar as conexões, vai descobrir que esses elementos estão dentro de um contexto sócio-político. Somente com muito diálogo é possível enxergar tais conexões e vislumbrar oportunidades de contribuir fomentando a tomada de decisão para a transformação rumo a um mundo melhor, tudo começa portanto se mantendo atento e ativamente disposto a contribuir.
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